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Desde o início do atual surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, houve uma grande preocupação diante de uma doença que se espalhou rapidamente em várias regiões do mundo, com diferentes impactos.

A doença foi identificada pela primeira vez em Wuhan - China, em 1 de dezembro de 2019. Acredita-se que o vírus tenha uma origem zoonótica, porque os primeiros casos confirmados tinham principalmente ligações ao Mercado de Huanan, que também vendia animais vivos. Em 11 de março de 2020, a OMS declarou o surto uma pandemia. Até 29 de dezembro de 2020, pelo menos 81 249 028 casos da doença foram confirmados em pelo menos 191 paises e territórios, com cerca de 1 772 912 fatalidades reportadas e 45 937 151 pessoas curadas.

Não existiam planos estratégicos prontos para serem aplicados a uma pandemia de coronavírus - tudo é novo.

Grande parte dos Países ja estavam fechados tentando conter o vírus. No brasil, os primeiros casos foram reportados no inicio de Fevereiro.

 

Belém

 

No dia 12 de maio de 2020, aceitei a oferta de atuar na linha de frente como medico em Belém do Pará que tinha escassez de profissionais. Fui em caráter temporário mas acabou estendendo muito além do que imaginava, cruzando o Norte do País.  Foi mais uma grande aventura como qualquer outra, cheio de angústias, medos, experiências e recompensas. Nossa rotina era simples resumindo em trabalhar e hotel que tinha basicamente nós hospedados. No 30 andar tinha uma bela piscina, que ficava as tardes de folga e nos reuníamos para jantar a noite. Em Belem atuei em hospital particular da rede Hap vida até o final de Maio quando recebemos o convite para atuar em nome do Médicos sem fronteiras em Manaus. A cidade já se estabilizava da demanda enquanto Manaus tinha grande previsão de piora. Sempre foi um sonho participar desta organização sempre com conotação humanitária nos locais com grande demanda e sem duvida aceitei o convite.

Manaus

Cheguei em Manaus por volta do dia 31 de Maio, no coração da Amazônia. A cidade tinha projeções de pico de lotação dos hospitais para os próximos dias, pois não houve isolamento social efetivo. A cidade tinha grande fluxo de pessoas apesar das orientações. Estávamos ali atuando, em nome do Médicos sem Fronteiras (MSF), no hospital 28 de agosto,  uma das maiores unidades da rede de urgência e emergência do Amazonas.

Além de alguns amigos da faculdade, tive o imenso prazer de conhecer pessoas do próprio hospital e do MSF. Mantínhamos nossa rotina de trabalhar e hotel. Fazíamos tudo juntos.

São poucos os registros dentro do hospital em respeito a privacidade dos pacientes. 

 

Interessante olhar retrospectivamente e ver o importante papel deste local em nossa sanidade mental. O dia a dia era diferente em relação a pratica medica habitual. Existia medo, insegurança e tristeza. As vezes brigávamos com tudo que tínhamos para salvar um paciente e terminávamos somente com a frustração de perde-los.

As regras do MSF em relação a proteção individual eram bem rígidas, ainda mais que as orientações gerais para todos. Faz sentido em pensar que a organização atua em todo mundo. Ninguem iria brincar de quebrar regra se estivesse atuando contra o Ebola, por exemplo.

O cansaso físico existia, afinal trabalhávamos quase todos dias em turnos de 12 horas que as vezes estendia para 24 ou mais.

E por fim, o telhado. Ali era onde nos reuníamos no fim dos plantões ou nas folgas. Embora as vezes estivéssemos “clandestinos” em relação a períodos que não podíamos sair dos quartos, nos encontrar era importante para compartilhar angustias, discutir casos, tomar uma cerveja, jantar e confraternizar. Convivemos todos dias durante os plantões, não achava errado nos encontrar a noite. 

Nos últimos dias, as regras internas flexibilizaram assim como a cidade abriu novamente às atividades mais básicas. Desta maneira, podemos sair conhecer a cidade e fazer alguns passeios privados. Já no primeiro dia, conhecemos o José, que nos levou algumas vezes para conhecer a floresta, os rios e sua futura pousada, que esta em construção no meio da floresta.

Manaus e o principal centro da região norte do Brasil. E a cidade mais populosa de toda amazonia brasileira. Está no centro da maior floresta tropical do mundo, mais precisamente no encontro do rio negro com o rio solimoes. Este local precisamente é um dos principais pontos turísticos de Manaus, onde se pode identificar claramente a diferença de cor e temperatura dos 2 rios.

O teatro amazonas é um dos mais importantes do país. Sua historia esta relacionada à época da borracha, quando Manaus se tornou um importante centro econômico e a elite local queria elevar a cidade a maiores patamares culturais. Dispensa comentários em relação a sua beleza.

Alem da bela floresta amazônica, tivemos a oportunidade de conhecer a cultura ribeirinha e a fauna local.

Ainda que não concorde com a domesticação de animais, os passeios sempre vao por comunidades indígenas que hoje dependem do turismo.

Paramos em uma comunidade ribeirinha onde nosso guia José morava. Conhecemos sua família e um dos dias encontrei o barbeiro da região que vinha de barco ate as casas e estava cortando cabelo de um senhor. Me impressionei com a simplicidade e felicidade dele de cortar nosso cabelo, pois eu e o Henrique já aproveitamos a oportunidade.

Nos despedimos de Manaus quando uma nova capital apresentava projeções piores do Covid. Alguns voltaram para São Paulo, alguns continuaram e segui junto com o Alan e a Mariana para Boa Vista. Atuariamos novamente pelo Médicos sem Fronteiras (MSF) mas a verdade é que não tínhamos ideia do local ou do que faríamos lá. Essas dúvidas e incertezas pouquíssimas vezes resultaram em arrependimento.

Nos despedimos e fomos para esta capital brasileira no hemisfério norte.


Boa vista


Enfim Boa Vista - Roraima! Chegamos no fim de Junho para atuar em nome do Medicos sem Fronteiras e pouco sabia de qual seria minha função, como atuaríamos e dos detalhes da missão. Grande parte do grupo de Manaus voltou para suas respectivas casas, ou nos encontraram depois. Fomos inicialmente em 3 pessoas: Eu, Alan e Mariana. 

Nos deparamos com um enorme hospital de campanha com capacidade para ate 700 leitos que era administrado pelo exercito que seria inaugurado nos próximos dias destinado apenas ao Covid. O Alan havia chegado 2 dias antes pois era o responsavel pela nossa contratação. No dia que chegamos, recebemos uma ligação de ultima hora com a noticia que o hospital iria inaugurar e receber os primeiros pacientes naquela noite. O Alan prontificou-se e o foi o primeiro escalado para o trabalho. No dia seguinte fomos eu e a Mariana para descobrir o que seria nosso trabalho e nos deparamos com uma enorme bagunça. O hospital havia aberto na noite anterior e por isso não havia nenhum fluxo estabelecido, os profissionais eram todos novos de todas áreas e inclusive alguns no primeiro dia de atuação na profissão (médicos, enfermeiros, técnicos enfermagem, laboratório e todos outros setores). Havia um turbilhão politico (explicarei em posts adiante) ocorrendo no estado, no CRM e diversas outros setores que eram entraves para o funcionamento do hospital. Nos deparamos frequentemente assistindo coletivas de imprensa no hospital com representantes de varias organizações, prefeitos, governadores e os militares. O surrealismo do que acontecia ali nos fazia questionar diariamente o que faziamos ali no meio. Confesso que o questionamento era acompanhado de certo entusiasmo pela experiencia que estavamos vivendo.


O exercito atua na Operação Acolhida para o ordenamento da fronteira, o abrigamento dos imigrantes e a sua interiorização. A crise politica, econômica e humanitaria é gravissima. É inimaginável o sofrimento que seres humanos têm devido ao autoritarismo na Venezuela e lamento que todos nós tenhamos os olhos fechados para o que ainda está acontecendo. A imigração de venezuelanos é uma atitude de desespero e muitas vezes uma questão de vida ou morte. Um exemplo que o colega @jogrevaro me comentou essa semana, um pão francês atualmente custa 4 dólares na Venezuela. O salário mínimo de lá também é de 4 dólares. Simplesmente não há alimentos e mercadorias no país. 

A  operação acolhida mudou a cara de Boa Vista em relação a imigração dos Venezuelanos. Antes, estavam todos acampados em praças, com os indices de criminalidade aumentando e muitos em situação de pobreza extrema. Atualmente, são inúmeros abrigos espalhados por toda cidade (não todos do exercito) que fornecem abrigo, comida e estrutura basica. A operação do exército trabalha na capacitação dos imigrantes e interiorização (quando enviam eles com cursos técnicos para outros estados brasileiros, com emprego, hospedagem e comida já garantidos). Sai 1 avião da FAB por mês aproximadamente com os imigrantes em busca de nova vida e oportunidades.

São muitas ONG´s e parceiros que atuam em conjunto ao exercito com finalidade humanitaria e o MSF é uma delas. Diante da inesperada pandemia, uma parte da estrutura virou o hospital de campanha destinado ao tratamento do Covid. O financiamento era de multiplos doadores, ONGs, governo municipal e estadual, militares e do Ministerio público. O hospital tinha capacidade para ate 700 leitos enfermaria e 30 leitos UTI. Atingimos aproximadamente 140 internados na enfermaria e 20 na UTI. Havia enfermarias destinadas apenas a indigenas. Nestas, o paciente poderia optar por ficar em leito ou em rede, ja que alguns recusavam deitar em cama. Era interessante situações como justificar que não poderiam fazer fogueira na enfermaria, receber o Pajé para rituais em pacientes mais graves e algumas outras respeitando a cultura deles. Tinhamos toda estrutura, medicamentos, exames e recursos humanos necessario para esta guerra. Tenho orgulho do papel desempenhado pelo “nosso” hospital. 


Boa Vista é uma cidade planejada e me surpreendeu com sua segurança, qualidade de vida e beleza. Confesso que por ignorancia, minhas expectativas eram todas contrarias ao que conheci. A cidade e relativamente pequena com pouco mais de 400 mil habitantes. Abriga ⅔ de toda população do estado de Roraima e situada no hemisferio Norte, é a cidade mais distante da capital do País.

Por ser planejada, o transito parece mais organizado e menos intenso. Me impressionei com a quantidade de parques e praças de esportes públicas disponiveis. O Rio branco que tangencia a cidade, forma praias para o lazer dos moradores. Praticamente nao há predios na cidade. Muitos nunca viram elevadores ou escadas rolantes. A cidade ainda expande com multiplas construções, inclusive um enorme complexo turistico. Como já citei, e claro que existe pobreza, porem há um enorme assistencialismo na cidade. Especialmente na época do Natal quando fui embora, a cidade fica linda. Nunca vi cidade tão decorada e iluminada, vale a visita.

Não é só a capital que exalta beleza, mas também o estado de Roraima. É o estado menos populoso do Brasil, fazendo fronteira com a Venezuela e Guiana ao Norte, Pará ao Leste e o Amazonas no restante. Também por ignorância, acreditava que também seria uma paisagem de floresta, porém chegando próximo a capital, a paisagem se aproxima mais a savana, possivelmente com ajuda do desmatamento pelas plantações de soja e pecuária. 

Nos dias vagos, tive a oportunidade de passear por lugares mais distantes para conhecer. Tepequem é uma cidade 200 km a norte de Boa vista que abriga inumeras cachoeiras. Há uma caminhada que fizemos ao amanhecer que nos permite apreciar o nascer do sol em cima do platô da cidade. O lago caracarana fica na regiao chamada de Raposa Serra do Sol, que é um territorio indigena protegido. É necessario autorização para acampar no local como fizemos. Beleza exuberante, principalmente no fim da tarde quando o drone conseguiu boas fotos. Conhecemos tambem a cachoeira Veu de noiva, onde chegamos com um flutuante sensasional, navegado pelo dono que virou nosso amigo, o Toquinha. Por último o lago do Robertinho. Pela proximidade da cidade, fomos inúmeras vezes passar a tarde comendo peixe e tomando cerveja. Não podia perder a oportunidade de conhecer esse estado tao distante, ja que fiquei tantos meses morando ali.


Os pacientes. O foco do hospital de campanha sempre foi o atendimento para pacientes com o coronavírus. Iniciamos como Enfermaria pura até ter os nossos primeiros pacientes graves, quando abrimos a UTI. Fomos enchendo o hospital com transferências provenientes do principal hospital público de Roraima, o hospital geral de Roraima (HGR). Depois de algumas semanas, abrimos a porta para o pronto-atendimento de casos relacionados ao Covid. Viramos a referência ao tratamento contra o Covid na cidade. Quando diminuía o número de casos, e nosso hospital provisório caminhava para o encerramento, abrimos uma ala do hospital destinado ao atendimento de pacientes imigrantes venezuelanos sem Covid. 

O exército realizou uma triagem nos abrigos, e os pacientes que demandavam exames, procedimentos e cirurgias, eles encaminharam pro nosso hospital. Tentávamos fazer o possível para conseguir as demandas que muitas vezes eram muito caras. Os pacientes que atendemos eram extremamente negligenciados desde quando moravam na Venezuela, até quando chegaram no Brasil. Nosso SUS apesar de ser para todos, na prática não aguentava a demanda e de certa forma também negligenciava os imigrantes. Os pacientes que atendiamos, eram simples e ficavam extremamente gratos pelo atendimento digno que fazíamos, independente de conseguir o tratamento final ou não (alguns exigiam cirurgias complexas ou exames caros não disponíveis). Neste contexto voltei a trabalhar como ortopedista fazendo avaliações e inclusive, operamos 3 crianças que tinham necessidade desde cedo, mas nunca tiveram oportunidade. A gratidão era enorme. Podíamos ver os pais chorando por ter uma oportunidade que imaginavam nunca ter para os filhos, pacientes emocionados simplesmente por estarem sendo atendidos, esperança de conseguir um tratamento que nunca imaginavam, e enorme gratidão mesmo quando avisamos que não conseguiriamos dar o tratamento que eles precisavam. Um dos dias, compramos brinquedos simples para toda a enfermaria infantil. Os pais choravam quando os filhos recebiam algo que eles nunca poderiam prover, as crianças mal sabiam como se comportar por receber algo que acreditavam nunca poder ter. Todos saímos emocionados da enfermaria, com uma grande lição de vida, de humildade.

Muitos pacientes nos marcaram para sempre, mas dentre eles, cito 2 casos. Seu Manoel foi atendido no início do hospital e evolui para um caso grave. Ficou em nossa UTI muitos dias, chegamos a perder a esperança de salvá-lo várias vezes porém resistiu e foi de alta para nossa enfermaria. Por questões sociais, acabou ficando até o encerramento do hospital, melhorando cada vez mais e foi um dos sobreviventes, já que os pacientes que vão para UTI, tem mortalidade altíssima. Às vezes, comprávamos escondido a comida preferida dele para almoçar toda a equipe juntos. Outra paciente foi a Nancy. Mulher guerreira, que havia amputado uma das pernas ainda na Venezuela e veio com uma filha sem um dos membros inferiores para o Brasil procurando novas oportunidades. Tinha uma hérnia que demandava tratamento cirúrgico. Durante a internação caiu e fraturou o punho. Virou minha paciente ortopédica, reduzimos a fratura, imobilizamos, e acompanhamos. Estava ela ali internada, sem uma perna, com braco imobilizado com a filha (que fomos buscar no abrigo) cheia de planos para se tornar caminhoneira, ganhar a vida e garantir uma boa vida para a filha.

A lição de vida que carregamos de volta pra casa é indescritível. Não voltamos às mesmas pessoas. 


Certamente não foi só de trabalho que nos mantemos lá. Quando tínhamos nossas folgas, o grupo que não estava no hospital se reunia para visitar algum lugar ou simplesmente entre amigos para uma cerveja. Era importante algum tipo de lazer para quebrar a rotina de trabalho intenso quase todos dias. Acabei ficando quase todo período e vi a grande rotatividade de médicos que estiveram por lá. Era nítido que os médicos que estavam a mais tempo, acabam evoluindo com alguns transtornos psicológicos. Eu como muitos outros médicos passamos por situações de burnout. Aos que estavam mais tempo, tentávamos dar suporte uns aos outros. O lazer e o esporte eram importantes neste aspecto. 


Moramos meses em Boa Vista, e nossa qualidade de vida aumentou muito quando passamos a praticar esportes. Adoro praticar a maioria dos esportes e Boa Vista é uma cidade que tem estrutura pública ótima para todos eles. Saíamos dos plantões às 19 horas, íamos para alguma quadra jogar basquete, vôlei ou futebol, jantavamos e encerrava o dia. Fizemos contato com o Makuxi rugby clube, e fui com o Alan em algum dos treinos deles matar a saudade. Eu e o Alan somos colegas de longa data jogando pelo Medicina Rugby, time da Medicina USP. 


Foram muitas as pessoas que tive o prazer de conhecer e poucas que tive o desprazer de conhecer. 

Inicialmente estavamos em poucos. Já conhecia o Alan da vida, a Mari de Belém e conhecemos a tenente talita, diretora clínica de todo hospital. Ela era a interface entre a direção militar e o que acontecia dentro do hospital. No início estávamos em poucos, e muitos problemas demandam resolução e organização todos dias. Conforme aumentou o número de pacientes, foram aumentando a equipe. Neste novo cenário, acabei migrando para um função de gestão hospitalar em que eu estava coordenando as enfermarias, o Alan mais na UTI e a Talita junto conosco em todo hospital. Assim, trabalhamos juntos para manter o hospital funcionando e viramos bons amigos.

A nível de direção, respondemos para o General Barros, uma grande pessoa, humana, sensata. Muitas vezes temos estigmas em relação a militares, mas em relação ao general Barros, só tenho admiração. A Dra Mariângela, que representava o ministério público, era quem viabilizava muitas coisas que demandavam financiamento e interação com entidades, políticas e clínicas da cidade para conseguir exames, por exemplo. Uma pessoa extremamente humana e preocupada para que os pacientes tivessem tudo e do melhor. Foram essenciais para fornecer toda estrutura que o hospital precisava. Era quase todo dia uma guerra para resolver um novo problema. Não sei como, mas apareciam desde o início até fechar o hospital. 

Tínhamos no início o MSF e talvez a vitória tenha sido uma das poucas que carregamos a amizade para a vida. Ela atuava viabilizando meios políticos para a organização atuar. Me perguntaram várias vezes em relação a seriedade da organização Médicos sem fronteiras e com minha experiência, posso afirmar que é uma organização séria atuando de forma humanitária. Atuamos muito tempo com eles e é claro que temos nossas críticas internas em relação a forma de atuação, mas sem questionar a índole e suas boas intenções.

Por fim, mais uma grande história. Nossa chegada foi em um momento político conturbado por diversos conflitos de interesses. Na área médica, houve uma negociação com os médicos e CRM local para contratação de médicos, porém além da escassez, não chegaram em acordo pois não havia orçamento para pagar o solicitado por eles. Diante disso, e da necessidade de abrir o hospital, o Ministério Público cedeu uma liminar autorizando a atuação de "médicos sem CRM”, que são médicos formados no exterior ainda não aprovados pelo revalida (que não houve prova desde 2017). Chegamos neste contexto no dia que abriu o hospital com aproximadamente 15 médicos sem CRM por turno que deveriam ser supervisionados por nós. Lembro o primeiro dia que chegamos, todos olhando para nós buscando alguma orientação de qual deveria ser o fluxo e organização do atendimento porem nao tinhamos a menor ideia que teríamos essa função e como deveria ser organizado. Por fim, fomos todos juntos nos organizando e colocando o hospital para funcionar. O fato é que tínhamos CRM para supervisioná-los e viabilizar legalmente o funcionamento do hospital. Desta forma, nossos nomes começaram a rodar por toda classe médica do estado e em diferentes circunstâncias sofremos pressão indireta, de perder CRM por atuar com eles dentre outras mais graves. Chegamos a considerar o risco a nossa segurança e pensamos até em abandonar tudo e voltar para casa. 

O grupo de médicos era enorme, com aproximadamente 60 médicos para dividir em 4 turnos de plantões. Alguns trabalhavam como uber, vendendo bombom no semáforo e se viravam como podiam pra viver, pois não podiam atuar como médicos no brasil. Tinhamos médicos muito inexperientes e de péssima qualidade e especialistas em algumas áreas que sabiam muita medicina, porém todos tinham que atuar sob supervisão como se fosse internos discutindo os casos. Experiência semelhante aos médicos com CRM que passaram por lá para trabalhar temporariamente. Alguns não tinham condições e outros muito bons. A fábrica de produzir médico de qualquer maneira, por ser rentável, vem sucateando nossa medicina como esperávamos.

Por pressão das entidades, esses nossos colegas pararam de atuar alguns dias antes de fechar o hospital. Muitos de outros estados voltaram para suas respectivas casas para estudar para a prova do revalida que teve esse ano. Muitos dos nossos colegas capacitados e dedicados estarão em breve trabalhando conosco. Desejo o melhor a todos esses batalhadores.


Algumas amizades sabemos que serão carregadas pro resto da vida, independente do tempo e da distância que nos separam. Muitas amizades resultaram em Boa Vista e é impossível citar a todos. Já citei grande parte dos que estiveram o tempo todo lá e dos que passaram temporariamente trabalhar conosco. 

No primeiro dia quando fomos jantar, paramos em um restaurante boteco que era o único aberto pois estávamos no meio da pandemia. Acabamos jantando escondido dentro do local e conhecemos o Adriano. Nos contou sua história dos tempos em que era cantor era famoso na boêmia do Rio de Janeiro. Nos tornamos grandes amigos e nos ajudou muito apresentando Boa Vista. Ganhei um disco de vinil do famoso Adriano Jorge pela amizade que fizemos. Foram muitos jantares muito bem preparados em seu restaurante, o Meu Cantinho. Conhecemos e nos encantamos com sua filha, a Aninha. Sua mãe e indigena e separada de Adriano, porém mantêm uma ótima relação. A Aninha, sempre muito educada, ganhou todos nós que a conhecemos. Fui embora com ela me chamando de padrinho, o que me traz grande orgulho. Espero que voe alto na vida, como sonha seu pai.


 Por fim, encerrando a história de nossa experiência contra o Covid em Boa Vista, voei de volta pra casa no dia 23 de novembro. Fiquei do início ao fim do hospital de campanha, pois apesar de estar muito estressado no fim dele, não conseguiria abandoná-lo. O que fazíamos lá era motivo de orgulho e nos sentimos responsáveis por ele do início ao fim. A operação Acolhida voltou novamente o foco para a assistência aos imigrantes, assim como muitas das organizações que atuavam ali. 

Separei alguns dos últimos dias para descansar e turistar por Roraima, porém nesses últimos dias fiquei doente e muito mal, suspeitando de Dengue. Fiquei de cama, sem conseguir fazer nada, indo no hospital diariamente para medicação e exames, com estes exames muito alterados e sinais de gravidade. Tinha muito medo de precisar de UTI do HGR, porém fui tranquilizado quando os militares comunicaram que me cederiam um avião UTI da FAB se fosse necessario. Por fim, já em São Paulo diagnostiquei que tive Leptospirose. Não tenho ideia como peguei mas de fato era muito grave o que me deixou muito mal.

De volta para casa, não é fácil retomar a vida que deixei pausada em São Paulo. Buscar novamente oportunidades que perdi e reestabelecer objetivos na vida. Ainda na pandemia, vivi uma bela aventura.